sábado, 19 de abril de 2014

Livro - Sagrado - Capítulo 3

Sagrado

Durante muito tempo existe um livro que está borbulhando em meu cérebro. Não está completo, sonho tanto com suas partes que tive que escrevê-lo, se vou terminá-lo é outra história.

Capítulo 3

Período Paleolítico - Em torno de 15.000 a.C.

A fêmea estava na caverna com suas tintas, criadas de uma mistura de raiz e diversas terras, uma palheta com mais de 20 cores estava a sua disposição, várias crianças estavam a sua volta e a observavam com os olhos arregalados de admiração por seu trabalho. Eka era uma autêntica Homo Sapiens, possuía uma altura acentuada, membros retos e peito amplo, como também, uma maior capacidade craniana encontrada até então, o que provava facilmente através de sua arte e magia.

Em sua linguagem ela desenhava e explicava para as crianças contando suas histórias, de como o Criador de tudo está em cada um dos seres vivos como uma força divina, presente no mundo e em tudo o que nele existe (1). Seus desenhos impressionava pelo realismo e as crianças estavam mudas, sentadas comportadamente em pedras dispostas num semi-círculo a volta da artista.

Essa parte da grande caverna estava localizada fora da zona central, na qual reinava as pinturas sobre história da caça, era como uma avenida transversal com uma abertura lateral que ficava fora do caminho conhecido. Este foi o local escolhido por Eka para desenhar as figuras que deveriam ser repassadas para todas as gerações posteriores, era conhecida como a Grande Comunicadora, uma pessoa respeitável no clã que podia desenhar, ensinar, interpretar e conhecer (hoje teria o título de uma professora).

O grupo de Eka prosperava, sua caça era abundante e alguns começavam a praticar uma nova arte conhecida como Agricultura (2). Ao depender somente da caça deveriam migrar para novas área constantemente em busca de comida mas, com a criação de culturas, isso não seria mais necessário. Eka sempre selecionava e entregava as melhores e mais sadias sementes, o terreno era preparado a força do braço. Ainda não existiam animais domesticados a exceção de canídeos, ensinados a caça, que eram trazidos ainda filhotes para a tribo e adotados pelas crianças. Com chuvas regulares e um bom terreno a colheita era abundante, Eka também sabia que restos de comidas e cinzas da fogueira podia ajudar e as despartia por todo o terreno (muitos acreditavam ser isso uma espécie de benção).

Uma grande árvore se erguia, o que conhecemos hoje como Acacia decurrens ou Acácia Negra (3), com mais de 30 metros de altura e uma grande copa o que dava muita sombra nos dias de calor. Era considerada como a força da tribo, mal eles sabiam que realmente a árvore era responsável por muitos dos benefícios de sua precária agricultura. Ferir ou machucar essa árvore não passaria na mente de nenhum dos integrantes da tribo e era considerado um Tabu.

Na caverna, Eka desenhava essa árvore em todo seu esplendor, ela lembrava da época que ela estava toda florada e dominada de flores amarelas. Suas cores pareciam iluminar a caverna e qualquer um que a visse saberia instintivamente que quem desenhou possuía muito poder e receberia a mensagem que ali existia algo de tamanha grandeza e beleza como prova de que o Criador abençoava a tribo.

Uma criança entrou na caverna correndo.

- Eka, Eka, Eka... - disse o menino ofegante.
- Sim Mauiki - virou-se Eka sorridente.
- O grande disco solar está caindo, fiz conforme você pediu e vim correndo.
- Obrigada Mauki - Disse ela acariciando a cabeça de Mauiki.
- Sou merecedor Eka? - falou o menino com os olhos brilhando.
- Sim Mauki e aqui está.

Eka entregou uma pedra com um sol desenhado nela, sempre que pedia um favor creia que tinha que dar algo em troca. Essas pequenas pedras desenhadas eram muito apreciadas e cobiçadas pelas crianças que as exibiam como verdadeiros troféus. Alguns dos mais jovens caçadores achavam que seu sucesso estava em ter adquirido uma das pedras de Eka na infância e as carregado consigo durante a jornada de caça.

- Obrigado Eka, obrigado. - Disse o menino pegando reverencialmente a pedra com os olhos cheios de lágrimas.
- Você é merecedor Mauiki.

Eka sempre escolhia uma das crianças para fazer vigília na porta da caverna no dia necessário. Isso se devia por dois fatores, o canto que ela desenhava não batia a luz solar e por não ter relógio não podia computar o tempo que passava ali dentro. Esse trabalho de vigília poderia ser considerado como uma espécie de castigo pois todas as crianças gostavam de ver como ela realizava seu trabalho, mas em seu jeito de ser, Eka tinha criado as pequenas pedras desenhadas como modo de "premiar" quem ficasse de fora a espera que o sol inciasse seu descenso. No final essa criança não perdia muita coisa, pois todas as crianças reproduziam o que tinha acontecido na caverna entusiasmadas.

A Cerimônia

Eka sabia que a hora tinha chegado, essa noite teria a primeira lua cheia do mês e ainda tinha que se preparar. Deixou seu material de pintura, se despediu afavelmente das crianças e saiu da caverna para se banhar no rio.

No rio já estavam jovens se banhando e outras já realizavam os preparativos finais. Vestidas com uma espécie de pele branca, um colar de flores que enfeitava seus cabelos e pinturas coloridas que delineavam seus rostos, prontas para ir a uma festa (ou sair a um grande encontro). Ao todo eram mais de 20 que se arrumavam, desde as mais jovens até as mais velhas. Ninguém ajudava Eka a se preparar, e não existia qualquer sentido de hierarquia, todas elas eram iguais aos olhos do criador.

Essa era a primeira cerimônia, o evento de contato com o criador, os homens da tribo não participavam, alguns dormiam e outros ficavam na caverna comendo ou contando histórias assim como os meninos. Eka explicava para os meninos que os homens eram caçadores, matavam as criaturas do criador, assim não podiam saudar o criador.

- Mas, ainda não cacei nada Eka - Dizia um do meninos curiosamente.
- Sim Kauki, mas um dia você caçará, não existe o tempo para o Criador que existe desde o começo e vai existir para todo o sempre, aos olhos dele você já é um grande caçador da tribo.

O menino assentia e se alegrava em saber que um dia seria um bom caçador. Assim ensinava Eka, nunca desprezava ninguém e sempre alagava as habilidades de todos, por esse motivo era venerada pela tribo. Não possuía nenhum inimigo, todos a amavam e a respeitavam não por um sentido de hierarquia mas por um senso comum.

Uma vez que todas as mulheres terminavam em se aprontar iam caminhando para a Grande Árvore. Em torno a grande árvore, as mulheres sentavam e esperavam, esperavam que o Sol (masculino) deixasse seu lugar a Lua (feminino), se tivéssemos um calendário nessa época saberíamos que coincidentemente o dia era um Domingo (4). Quando a Lua finalmente surgiu no céu estava cheia e brilhante, mas a hora adequada ainda não tinha chegado.

Neste primeiro momentos, as mulheres levantaram e os ritos iniciaram. Cada uma delas, simplesmente pela ordem de quem tinha chegado primeiro, levantava-se e se apresentava com seu nome e o que sentia estando ali (sejam sentimentos felizes ou tristes, era impensável tentar mentir), normalmente as meninas que vinham pela primeira vez diziam que sentiam medo o que fazia Eka sorrir docemente por se lembrar de quando esteve ali na sua primeira vez.

Ao término dessa apresentação, começavam a cantar, não era algo decorado, conhecido, simplesmente a emissão do som que vinha de dentro de cada uma. Uma delas, ao acaso, começava e as outras harmoniosamente a seguiam formando a música e a melodia. Ficavam nessa espécie de embalo sonoro a espera. Algumas se sentavam, comiam ou bebiam algo, previamente trazidos para o local da cerimônia, não existia um formalismo do rito apenas sabiam que tinha que esperar.

As horas se passavam e exatamente a meia-noite quando a Lua estava mais brilhante e mais no centro de um céu claro, o canto tinha tomado corpo e proporção. Agora todas pareciam uma só. E nesse momento se estabelecia a comunicação com o Criador. Uma comunicação suave que não era pronunciada, mas sentida. Não era um êxtase espiritual, seria mais como uma percepção de conhecimento. O canto era simplesmente um meio de se chegar ao Sagrado. Não era um rito frenético com batidas era uma música pungente que saia da alma e chegava as esferas mais distantes.

Após certos momentos era chegado o último momento da cerimônia, consistia da divulgação do que foi percebido. Como se fossem organizadas cada uma das mulheres expunha o que tinha sentido sem confusões ou atropelos. Não existia a interpretação. Não existia a mentira. Quem não tinha sentido nada, não ficava envergonhada em confessá-lo. Quem achava que não deveria dizer nada, nada dizia. Não existia a obrigação a nada.

Eka recebeu uma mensagem que a deixou muito triste, sua tribo seria exterminada. Não por um ato divino, não por uma punição do Criador que estava insatisfeito com seu trabalho, mas como um fato que isso iria acontecer. Era como saber que algo triste vai ocorrer e que não se pode fazer nada para impedir. Muitas outras mulheres também perceberam o mesmo sentimento, e isso confirmou a mensagem enviada.

Agora a tribo deveria fazer seus preparativos para permitir que seu legado fosse passado.

(1) Esse modo de Religião é atualmente denominado de Panteísmo.
(2) Historicamente o surgimento da Agricultura se deu entre 8.000 e 5.000 a.C.(Período Neolítico), quando o homem deixou sua vida nômade, sedentarizando-se às margens dos rios e lagos, cultivando trigo, cevada e aveia.
(3) Espécie leguminosa de múltiplos propósitos, tais como restauração de ambientes degradados, fixação de nitrogênio, produção de tanino e de energia, dentre outros. Fonte: Embrapa.
(4) Originalmente os dois primeiros dias da semana foram nomeados como Sunday (Dia do Sol) e Moonday (Dia da Lua).

Boa Leitura e até a próxima
Fernando Anselmo